Tácido Rodrigues
O Artigo 142 da Constituição Federal estabelece que o Presidente da República do Brasil, no exercício de suas funções, é, também, o Comandante Supremo das Forças Armadas. Porém, no final do seu mandato, em 2022, o capitão reformado Jair Bolsonaro, então ocupante do cargo, liderou uma facção de civis e militares dispostos a derrubar a democracia e se perpetuar, ilegitimamente, no poder.
Uma robusta investigação da Polícia Federal, tornada pública na terça-feira (26) pelo ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), não deixa dúvidas: Bolsonaro rascunhou – e não teve coragem de concretizar – um dos capítulos mais sombrios da História recente do País.
Para fazer justiça aos fatos, vale destacar a postura republicana dos comandantes do Exército, general Freire Gomes, e da Aeronáutica, tenente-brigadeiro Baptista Júnior, uma vez que, pela postura subserviente e antidemocrática do chefe da Marinha, almirante de esquadra Almir Garnier Santos, o então Chefe Supremo do Golpe teria efetivado seu intento.
Militares, políticos, advogados e até padre
No histórico documento de 884 páginas produzido pela PF, o nome de Bolsonaro aparece 441 vezes. Mas ele não agia sozinho. Militares do alto escalão, aliados políticos, assessores, advogados e até um padre tentaram manter o então presidente no poder, “a partir da consumação de um golpe de Estado e da abolição do Estado Democrático de Direito, restringindo o exercício do Judiciário e impedindo a posse de Luiz Inácio Lula da Silva”, conforme aponta a PF, que indiciou os principais 37 artífices da trama.
Entre os indiciados, algumas figuras centrais da organização criminosa trabalhavam com afinco no esquema golpista. Caso do almirante de esquadra Almir Garnier Santos, o único comandante das Forças Armadas que “ratificou sua adesão aos atos criminosos”. O comandante da Marinha no governo Bolsonaro também anuiu com os acampamentos em frente a quartéis do Exército, como ocorreu em Brasília.
A PF descobriu também uma minuta para criação de um “Gabinete Institucional de Gestão da Crise”, que seria instituído pelo GSI da Presidência da República, no dia 16 de dezembro de 2022, um dia após a consumação do golpe de Estado.
As investigações apontam que “o objetivo era assessorar Bolsonaro na administração dos fatos decorrentes da ruptura institucional”. O general Augusto Heleno seria o chefe de gabinete, que teria como coordenador-geral o general Braga Netto, candidato a vice na chapa derrotada nas urnas em 2022.
O papel de Mauro Cid
Delator, o ex-ajudante de ordens da Presidência, tenente-coronel Mauro Cid, é mencionado no inquérito da PF como “elemento de blindagem” de Bolsonaro. Ele seria o responsável por produzir documentos falsos que teriam identificado supostas inconsistências nas urnas eletrônicas, além de ter participado de reuniões em que o golpe foi aventado.
“Em diversos momentos se identifica a implementação de ações que jamais seriam feitas sem o conhecimento do Presidente”, lê-se no relatório. Trecho que contrapõe o que disse Jair Bolsonaro na última segunda-feira (25), ao negar as acusações de liderar o golpe, embora tenha afirmado que chegou a estudar a decretação de estado de sítio.
Costa Neto e Ramagem
O presidente do Partido Liberal, ao qual Bolsonaro é filiado, Valdemar Costa Neto, é citado no relatório por sua “atuação dolosa” ao fazer uma representação eleitoral que colocava em xeque a segurança e a transparência das urnas eletrônicas.
O dirigente, que em 2012 foi condenado e preso por corrupção passiva e lavagem de dinheiro, tinha “ciência de que os ‘argumentos técnicos’”, que serviram de fundamento para a ação junto ao TSE, eram falsos, por não haver qualquer fraude ou irregularidade no pleito de 2022.
Já o deputado federal Alexandre Ramagem (PL-RJ) é suspeito de, na condição de diretor-geral da Agência Brasileira de Inteligência (ABIN), “determinar a produção de relatórios ilícitos que pudessem reunir dados de interesse da organização criminosa com o fim de atacar o sistema eleitoral brasileiro”.
Milícia digital – Todos os indiciados tinham algo em comum além do desejo de perpetuar Bolsonaro no poder: utilizavam redes sociais e aplicativos de mensagens para disseminar notícias falsas, modus operandi que a PF chama “milícia digital” .
“Os produtores de dados falsos, difundiram em alto volume, por multicanais, de forma rápida, contínua e repetitiva, a ideia de que tanto nas eleições de 2018 quanto nas de 2022 foram identificadas diversas vulnerabilidades nas urnas eletrônicas”, o que revelaria uma inventada fraude para prejudicar Bolsonaro na corrida eleitoral que viria a perder.
Núcleos
A conclusão da PF é que, na tentativa de viabilizar o golpe, “identificou-se uma divisão de tarefas em núcleos, com a criação de uma estrutura de atuação previamente ordenada”. Havia áreas específicas voltadas à desinformação e ataques ao sistema eleitoral; incitação para os militares aderirem ao golpe de Estado; apoio às ações golpistas; inteligência paralela; operacional para cumprimento de medidas coercitivas e jurídico.
Munidos dessa estrutura, o próximo passo seria “neutralizar o chamado ‘centro de gravidade’, termo dado pelos integrantes da organização criminosa ao ministro Alexandre de Moraes, que seria o núcleo de resistência a ser vencido para obtenção da ruptura institucional”. A partir daí foram planejadas ações clandestinas para prender e assassinar Alexandre de Moraes, Lula e o vice-presidente Geraldo Alckmin.
Com a negativa dos comandantes do Exército, Freire Gomes, e da Aeronáutica, Baptista Júnior, os golpistas tiveram os planos frustrados e partiram para o plano B: apoiar as manifestações populares que pediam a ruptura institucional.
Instabilidade
A ideia era criar um ambiente de instabilidade, que culminou nas ações violentas vistas na capital federal nos dias 12 de dezembro de 2022, data da diplomação de Lula, e, principalmente, em 8 de janeiro de 2023, quando houve invasões e depredações contra os prédios do STF, do Palácio do Planalto e do Congresso Nacional.
Ao fim do relatório, a PF atesta haver elementos suficientes “de que os investigados atuaram de forma coordenada, mediante divisão de tarefas, com o emprego de grave ameaça para restringir o livre exercício do Judiciário e impedir a posse do governo legitimamente eleito. Completa ainda que as provas colhidas “corroboram as hipóteses criminais enunciadas na presente investigação, demonstrando autoria e materialidade dos fatos”.
Defesas
Em nota à imprensa, a defesa do almirante Almir Garnier “reitera a inocência do investigado”. A defesa de Braga Netto “destaca e repudia veementemente, e desde logo, a indevida difusão de informações relativas a inquéritos, concedidas ‘em primeira mão’ a determinados veículos de imprensa em detrimento do devido acesso às partes diretamente envolvidas e interessadas”.
Mauro Cid, Alexandre Ramagem, Valdemar Costa Neto e os generais Augusto Heleno e Braga Netto não se manifestaram sobre o indiciamento da Polícia Federal até o fechamento desta edição.
Bola da vez
Com o encaminhamento dos autos para a Procuradoria Geral da República, a bola da vez está com Paulo Gonet. Como chefe do Ministério Público Federal, caberá a ele decidir se vai denunciar os acusados, pedir novas informações ou arquivar o inquérito. Apesar de a legislação prever que Gonet tem até 15 dias para se manifestar sobre o relatório, não há um prazo definido para a denúncia. A tendência é que isso só ocorra em 2025. Caso os investigados sejam denunciados pela PGR, o julgamento ocorre no STF. No caso de Jair Bolsonaro, a pena pode chegar a 28 anos de prisão e prolongamento do tempo de inelegibilidade.